quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

História de MÁRIO ALVES DE SOUZA VIEIRA / e texto de MMM "DESCOBRINDO MÁRIO ALVES" -XXIV- - Vanderley-Revista

M
ÁRIO ALVES DE SOUZA VIEIRA
Secretário-Geral do PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO REVOLUCIONÁRIO
(PCBR).
Nasceu em 14 de fevereiro de 1923 em Santa Sé, Estado da Bahia, filho de Romualdo Leal Vieira e Julieta Alves de Sousa Vieira.Desaparecido aos 47 anos, no
Rio de Janeiro.Jornalista, tendo dirigido os jornais
Estudantes da Bahia.habeas-corpus.
Por sua oposição à orientação predominante na direção do PCB, Mário Alves foi afastado da Comissão Executiva e deslocado para atuar em Belo Horizonte,
onde permaneceu até 1967.
Já, em 20 de maio de 1966, um ato do Presidente Castelo Branco cassa seus direitos políticos por 10 anos. Em 6 de junho do mesmo ano, foi julgado à revelia
no chamado processo das “Cadernetas de Prestes” e condenado a 7 anos de prisão, pela 2ª Auditoria Militar de São Paulo.
A luta interna no PCB também se acirrava e, no VI Congresso, realizado em 1967, Mário Alves, juntamente com Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira,
Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho, Manuel Jover Telles e Miguel Batista dos Santos foram expulsos.
Em 1968, junto com Jacob Gorender, Apolônio de Carvalho e outros, Mário Alves fundou o PCBR (Partido Comunista Brasileiro Revolucionário), continuando
a militar clandestinamente.
Em 16 de janeiro de 1970, entre 19:30 e 20:00 horas, saiu de casa para voltar dentro de pouco tempo. Foi preso pelo DOI/CODI-RJ, para onde foi levado. Na
madrugada do mesmo dia, Mário Alves morreu sob torturas.
Mário foi visto sangrando, abundantemente, na sala de tortura, por vários presos políticos que se encontravam no DOI/CODI, dentre os quais, René Carvalho,
Antônio Carlos de Carvalho e o advogado Raimundo Teixeira Mendes .
Os soldados que serviam no PIC (Pelotão de lnvestigações Criminais), onde está situado o DOI-CODI, foram retirados do local, para que o corpo de Mário
pudesse ser removido sem testemunhas.
Apesar das evidências, os órgãos de segurança negam a prisão de Mário.
Em 01 de dezembro de 1987 foi julgada a apelação civil n° 75.601 (RJ), registro 2678420, onde sua mulher e filha conseguiram da União a responsabilidade
civil por sua prisão, morte e danos morais. Foi o 1° caso de desaparecido político em que a União reconheceu sua responsabilidade.
Foram advogadas as Dras. Francisca Abigail Barreto Paranhos e Ana Maria Müller.
O Relatório do Ministério do Exército diz que “foi condenado em 06/06/66 a 7 anos de reclusão e em 17/11/73, a três anos, ambos a revelia.”
Dilma, companheira de Mário Alves, enviou uma carta à esposa do cônsul brasileiro, seqüestrado no Uruguai. Destacamos aqui alguns trechos:
“Todos conhecem seu sofrimento, sua angústia. A imprensa falada e escrita focaliza diariamente o seu drama. Mas do meu sofrimento, da minha
angústia, ninguém fala. Choro sozinha. Não tenho os seus recursos para me fazer ouvir, para dizer também que “tenho o coração partido”, que quero
 meu marido de volta. O seu marido está vivo, bem tratado, vai voltar. O meu foi trucidado, morto sob tortura, pelo 1° Exército, foi executado sem
 processo, sem julgamento. Reclamo seu corpo.
Nem a Comissão de Direitos da Pessoa Humana me atendeu. Não sei o que fizeram dele, onde o jogaram.
Ele era Mário Alves de Souza Vieira, jornalista. Foi preso no dia 16 de janeiro do corrente, na Guanabara, pela polícia do 1° Exército e levado para o
quartel da P.E., sendo espancado barbaramente de noite, empalado com um cassetete dentado, o corpo todo esfolado por escova de arame, por se
recusar a prestar informações exigidas pelos torturadores do 1° Exército e do DOPS. Alguns presos, levados à sala de torturas para limpar o chão
sujo de sangue e de fezes, viram meu marido moribundo, sangrando pela boca e pelo nariz, nu, jogado no chão, arquejante, pedindo água, e os
militares torturadores em volta, rindo, não permitindo que lhe fosse prestado nenhum socorro.
Sei que a sra. não tem condições de avaliar meu sofrimento, porque a dor de cada um é sempre maior que a dos outros. Mas espero que compreenda
que as condições que levaram meu marido a ser torturado até a morte e o seu seqüestrado são as mesmas; que é importante saber que a violência-
fome, violência-miséria, violência-opressão, violência-atraso, violência-terrorismo, violência-guerrilha; que  é muito importante saber quem pratica a
violência - os que criam a miséria ou os que lutam contra ela”.
Do livro “Desaparecidos Políticos”:
“– Não dormíamos, acompanhando os interrogatórios e sofrendo cada uma das torturas que sabíamos estarem sendo aplicadas - e que cada um de
nós conhecia de perto - na cela ao lado. Não demorou muito para termos certeza que a vítima era Mário Alves...
– Diante da recusa de Mário a atender às exigências dos torturadores e das formas cada vez mais violentas de tortura a que foi submetido
(afogamentos, empalamento etc.) temi por sua vida. Alguém por ali havia dito que ele já estava com 56 anos de idade e tinha pouca saúde.
– De manhã, bem cedo, o cabo da guarda chamou Manoel João, Augusto e eu para fazer a faxina da sala ao lado. A sala estava enlameada, cheia de
água e , no chão, deitada, estava uma pessoa totalmente machucada, a pele bem ferida, cheia de hematomas... era um rosto magro com um pequeno
bigode... era Mário Alves.”
Depoimento do advogado Raimundo Teixeira Mendes, também detido na época na
P.E., do mesmo livro:
- Cerca de 20:30 horas do dia 16 de junho de 1970, sexta-feira... o DOICODI/ RJ... acabava de prender o Jornalista Mário Alves de Sousa
Vieira...conduzido para a cela que ficava ao lado...foi submetido a interrogatório, findo o qual iniciou-se a sessão de tortura que acabou às 5 horas.
- Depois de violentamente espancado... torturado com choques elétricos, no pau de arara, afogamentos, etc. Mário Alves manteve a posição de nada
responder a seus torturadores... então introduziram um cassetete de madeira com estrias, que provocou a perfuração de seus intestinos e a hemorragia
que determinou a sua morte.”
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DESCOBRINDO MÁRIO ALVES

Marcelo Mário de Melo

Purgar os erros.
Lembrar os mortos
Fecundar os sonhos.
Festejar as vitórias.
Se não fizermos isto
pela nossa causa
quem o fará?

(MMM)

Em 1970 o esquema repressivo da ditadura militar matou sob tortura o militante político Mário Alves Vieira, baiano de nascimento, jornalista, intelectual, fundador do  Partido Comunista Brasileiro Revolucionário - PCBR e integrante do seu comitê central. Na ocasião, Mário tinha 47 anos de idade. Se estivesse vivo, comporia com Apolônio de Carvalho e Jacob Gorender  a tríade dos comunistas históricos e ex-integrantes do comitê central do PCB,  que esgotando uma luta interna anterior a 1964, partiram para viver uma nova experiência partidária.

Mário Alves resistiu às torturas, enfrentou e afrontou os seus carrascos, “sacrificando o bem-estar da carne, a vida, para manter cerrados dentes, compromissos”. Depoimentos de testemunhas oculares e auditivas revelam rasgos de elevada altivez da parte de um homem conhecido como fisicamente frágil, que carregava uma úlcera e, naquela ocasião, já tinha o corpo macerado e as palavras ecoando manchadas de sangue. Isto revela a sua estirpe  o situa numa pequena parcela de presos políticos brasileiros de todas as épocas, “queimados na face com uma luminosa cicatriz de silêncio”. Mas é insuficiente para caracterizar a sua personalidade, que não pode ser apreendida por aspectos isolados,  nem através de equação, média ou denominador comum.

Compor o perfil de Mário Alves de corpo inteiro constitui um desafio a ser enfrentado. E é  na perspectiva de juntar pedras e seguir pistas que alinho antigas impressões, recolhidas em textos seus e nos contatos tidos com ele em 68 e 69, que embora breves, foram intensos e inesquecíveis. Antes, quero ressaltar a importância da matéria escrita por Otto Filgueiras, publicada no número 20 da revista Brasil Revolucionário, ano de 1996, que trás revelações  sobre a atividade intelectual de Mário Alves, aspectos da sua vida familiar e dos seus jeitos de ser como simples mortal.

Primeiros rumores -  Militando no PCB do Recife desde 1961, a partir da base do Colégio Pernambucano, eu sabia da existência de Mário Alves como diretor do jornal oficial do partido, o Novos Rumos. De vez em quando, lia algum dos seus artigos. Seu nome  esteve muito presente nas rodas militantes,  a partir de um trabalho publicado numa revista,  em parceria com Paul Singer, criticando o Plano Trienal de Desenvolvimento de Celso Furtado, então Ministro da Economia de um dos gabinetes do governo João Goulart, no período de regime parlamentarista implantado sob  pressão militar,  depois da renúncia de Jânio Quadros, ocorrida em agosto de 1961. Em certa altura ele passou a ser  citado como integrante do chamado “grupo baiano” do comitê central do PCB, que tinha posições mais à esquerda e era composto, também, por Jacob Gorender e Carlos Marighella. Naquela época, talvez por alguma associação com o cantor Francisco Alves, que povoou as manchetes e o cinema nacional até meados da década de 50, eu sempre imaginava Mário Alves um tipo alto, forte, moreno e vivaz, de paletó e gravata.

Debates e Ditadura -     Um mês antes do golpe militar de 64, o comitê central do PCB publicou no Jornal Novos Rumos as Teses para Discussão do seu VI Congresso. Na tradição dos PCs, começaram os debates e a eleição de delegados,  a partir das assembléias de base, preparando as conferências setoriais, que partiriam para as municipais, as estaduais e, finalmente, o congresso nacional. A polarização era forte em torno de alguns aspectos. Uma ala dizia que havia a possibilidade de um caminho pacífico para a revolução brasileira, que deveria ser esgotado.  Mantinha a crença na chamada burguesia nacional como integrante da frente nacionalista e democrática e, embora com um caráter dúplice e vacilante, possuindo um potencial revolucionário. A outra ala afirmava que a tentativa de golpe militar era inevitável e deveríamos estar preparados para enfrentá-lo, que o papel dúplice e vacilante dos setores burgueses progressistas era orgânico e insuperável, e que o eixo da frente  deveria ser constituído por operários, camponeses e camadas médias. Mário Alves desenvolvia estas posições.

O golpe interrompeu o congresso e acirrou a luta interna no PCB. A primeira grande polarização se deu  em torno de qual tinha sido o erro fundamental: se os desvios de direita, caracterizados na não preparação para a resistência pelas armas, na dependência ao esquema militar de João Goulart, ou se os desvios de esquerda, expressos na “pressa pequeno-burguesa” de querer acelerar o processo político artificialmente e, com isso, permitir a ofensiva da direita e a ampliação  das suas bases de apoio. Dois a três anos depois é  retomado o VI Congresso do PCB e se abre de novo a Tribuna de Debates, agora nas páginas do jornal A Voz da Unidade, órgão oficial do comitê central. Mário Alves teve uma presença marcante nos debates, através de artigos assinados com o pseudônimo de Martim Silva. As tendências alinhadas mais à esquerda se organizaram na chamada Corrente Revolucionária do PCB, ou simplesmente Corrente, que era uma grande articulação anti-comitê central e alimentou diversas organizações de esquerda. Nasceu oficialmente, o PCBR, em abril de 1968, tendo na direção Mário Alves, Apolônio de Carvalho, Jacob Gorender, Bruno Maranhão e outros companheiros. Marigella, ex-secretário político do comitê estadual do PCB em São Paulo, partiu para fundar a ALN. Dirigentes estudantis da Dissidência do Rio formaram um grupo autônomo, que depois se integrou à POLOP e resultou no POC. Dirigentes do Rio, entre eles Jover Telles, membro do Comitê Central, um certo tempo depois de fundado o PCBR, lançaram um manifesto intitulado Um Reencontro Histórico, e se integraram ao PC do B.

Me impressionou a qualidade do texto de Mário Alves: conciso, denso, objetivo, desprovido de gorduras e retóricas. Jornalista e com tarimba de tradutor de livros em inglês, francês e russo,  Mário Alves agregou uma qualidade literária aos documentos políticos que escreveu, merecendo destaque a Resolução da Conferência Estadual de Minas, preparatória do VI Congresso do PCB, os artigos na Tribuna de Debates, a Linha Política do PCBR, o  documento Raízes Ideológicas dos Nossos Erros e o texto em que polemizou com os dirigentes do Rio que optaram pelo PC do B, intitulado: “Reencontro Histórico, ou Simples Mistificação?” Agora, um esclarecimento. O texto escrito por Mário Alves sobre o comportamento do revolucionário na prisão e no tribunal,  não é, originalmente, seu. Trata-se de uma síntese de material constante do livro do advogado, escritor e comunista francês, Marcel Willard, intitulado “A Defesa Acusa”. Marighella cita esse autor, num folheto divulgado no PCB, em que também trata de interrogatórios e torturas. Não me lembro se a primeira distribuição da síntese de Mário informava sobre a fonte do seu trabalho. Com o tempo, predominou a versão de que as normas sobre o comportamento do revolucionário na prisão e no tribunal seriam da sua autoria. Mas se não teve o mérito de concebê-las, coube a Mário Alves, que as sintetizou e difundiu, a suprema dignidade de cumpri-las integralmente, até o último suspiro.

Contato ao vivo - Meu primeiro contato com Mário Alves se deu numa viagem de emergência que fiz ao Rio, para tratar junto ao Comitê Central, como representante do Comitê Regional do Nordeste, do rateio do apurado de um assalto a banco feito pelo nosso Comando Militar. Fui levado de olhos fechados a uma reunião do Comitê Central e lá conheci Apolônio de Carvalho e Mário Alves, com quem tive depois um encontro. Sentamos num bar, conversamos e continuamos andando, até o momento em que ele pegou o seu rumo. Eu achava que as informações que chegavam ao comitê  central sobre as forças do partido e as possibilidades da ação armada  no Nordeste, principalmente no campo, eram inflacionadas. Comecei a levantar algumas ponderações quanto à necessidade de uma maior preparação. Falei das dificuldades de recrutamento em função do refluxo do momento de massas, da nossa inserção, basicamente, nos segmentos pequeno-burgueses, das deficiências estruturais do partido e da precariedade do nosso trabalho de campo, com uma estrutura de militância  de características mais típicas de um trabalho de massas do que de uma ação de partido,  com as exigências propostas. Ele não levou muito em conta as restrições, não entrou em detalhes, nem alimentou o papo, afirmando que as dificuldades eram superáveis e não se constituíam em impedimento maior. Senti uma pressa em aprofundar o processo armado a todo custo e desconfiei de um certo espírito de concorrência pesando sobre o comitê central do PCBR, em face das ações armadas desencadeadas pelos chamados agrupamentos militares.  Nesse encontro, caiu por terra a imagem física que eu fazia de Mário Alves. Estava diante de um homem alvo, magro, ombros estreitos, meio franzino e um pouco encurvado. O rosto jovem, expressivo, atento  e com linhas bem desenhadas. Mário Alves tinha cabelos pretos e lisos,  penteados pra trás, e usava uns óculos escuros modernosos,  que lhe caíam muito bem.

Reuniões no Recife - Mário Alves chegou no Recife no primeiro trimestre de 69, para reunir com o Comitê Regional do Nordeste. No primeiro dia, reunião nos dois expedientes, entrando pela noite. E aí começou a se desenhar o estilo do homem. Uma meia folha de papel-ofício, dividida ao meio, de cima a baixo, pela marca de uma dobra, foi o terreno onde ele esquematizou sua intervenção. Do lado esquerdo, no alto, um pequeno esquema do que iria dizer. Abaixo disso, foi lançando as sínteses telegráficas das falas dos circunstantes. Em paralelo, na metade direita, as suas observações sobre elas. Ele abriu a reunião, ouviu os reunintes  e, no fim, fez considerações detalhadas, com base naquele pequeno papel. Até hoje, em reuniões e debates, me valho do esquema de Mário Alves. Mas além do macete técnico, as marcas substanciais. Havia uma tendência entre assistentes e dirigentes de instâncias superiores, em inflacionar muito a realidade, dando informes exagerados e excessivamente otimistas sobre as forças do partido em termos nacionais, ou simplesmente obscurecendo os aspectos de limitação e dificuldade. Mário Alves foi uma  verdadeira ducha de água  fria nessa deformação. Secou balões ilusionistas e deixou desenhada a verdadeira realidade orgânica do PCBR em todos os estados, muito mais limitada do que se imaginava.

Quando da sua vinda, eu atravessava um certo isolamento no Comitê Regional do PCBR. Considerado “à direita”, por manter uma resistência contra o que considerava militarismo, tive cortadas as assistências aos comitês zonais mais importantes e me concentrei na montagem da imprensa partidária. Quando Mário Alves chegou, estava pronto o  primeiro exemplar do “Luta de Classe”,  jornal do Comitê Regional, que trazia como centro a análise do Ato Institucional número 5, editado em 13 de dezembro de 1968. Eram considerados os aspectos políticos e se fazia uma abordagem da conjuntura econômica. Nessa segunda parte houve a colaboração do companheiro Frederico Oliveira (Fred), militante do PCBR, advogado e técnico em desenvolvimento econômico da Sudene, que atraiu a participação dos economistas  Alcino Rufino e Abelardo Baltar, que integrava o núcleo de profissionais liberais do PCBR com o pseudônimo de Abreu. O miolo do jornal já estava aprovado e faltava o editorial, que Mário Alves leu em silêncio e, em seguida, olhou para mim, levantando o polegar. Lembro-me de que o texto começava assim: “A crise que antecedeu a edição do Ato institucional número 5 foi essencialmente política.”. No fim da reunião, Mário Alves declarou que as divergências existentes no interior da direção eram normais e não deveriam levar a desconfianças e restrições entre os companheiros, todos empenhados em levar as tarefas revolucionárias à frente.  Depois disso, desfez-se o cerco às minhas atividades e melhorou o clima  no trabalho de direção.

História & Humor - No segundo dia, a reunião durou somente o expediente da manhã e  partimos  para um almoço descontraído, que se esticou numa gostosa roda de bate papo em torno da mesa, até o anoitecer,  quando Mário Alves pegou a estrada de volta ao Rio. Foram muitas histórias, com esclarecimentos, folclore político e piadas, onde apareceu o seu lado irreverente e satírico. Ele falou em detalhe sobre as entrelinhas  do PCB em vários momentos: o   período de transição da ditadura para a anistia de 46, as reações ao informe secreto de Nikita Kruschev, em 1953,  denunciando os crimes de Stalim, as polarizações no interior do Comitê Central no período posterior ao golpe. Aspectos caricaturais e pitorescos vivenciados na sua juventude, envolvendo a figura de Otávio Brandão, fundador do PCB,  provocaram ataques de riso. Mário fez algumas gozações com Jason, o  agitado companheiro do Comitê Central,  que dava assistência ao Nordeste: “O Jason é uma demonstração viva da dialética  entre a causa e o efeito: quando ele está tenso, aperta em baixo; quando aperta em baixo, fica mais tenso em cima”. Dizia isto fazendo demonstrações dos dois apertos, com movimentos  de abre-e-fecha das duas mãos levantadas. Foi essa abertura humorística de Mário Alves - soube por Jason - que me salvou, depois, de uma medida disciplinar do Comitê Central do PCBR.

 Nos primeiros contatos em Pernambuco, Jason escreveu um documento de 10 laudas, datilografado em espaço-um, sobre as potencialidades da luta armada na área rural do Nordeste, e lhe deu o título de “Anotações para um Esboço de  Esquema”. Apolônio de Carvalho, em alguns documentos, quando se referia ao PCBR, colocava este acréscimo: “partido motor e guia”, e costumava fazer longas citações da Resolução Política aprovada no Congresso. O grupo de trabalho indicado pelo comitê central para concluir um estudo sobre o movimento estudantil, não apresentava o resultado. Mário Alves, ao fim de uma rodada de reuniões do Comitê Central, foi encarregado de escrever três documentos, sendo um deles, o “Raízes Ideológicas dos Nossos Erros”. Tudo isso eram motes para a minha produção satírica. Um dia, escrevi para  Jason uma carta intitulada  “Prefácio para um Prólogo de Bosquejo”, começando assim : “O PCBR, partido motor e guia, caixa de marcha, arranque, acelerador...” A torto e a direito, meti citações da Resolução Política.E ainda encaminhei em anexo um livreto datilografado, em forma de brochura, com uma série de  poemas satíricos inspirado nas coisas do PCBR. Hoje esses textos, com ligeiras adaptações, compõem a série dos Poemas Antiburocráticos. Na época eram, simplesmente,  os “burocras”, organizados assim:  Burocra 1, Burocra 2,  Burocra 3, etc. Jason me disse que, no intervalo de uma das reuniões do comitê central, expôs a carta e os textos, provocando a indignação de um dirigente, que falou em anarquismo intelectual e  sugeriu uma medida disciplinar. Mário Alves veio em minha defesa, tirando por menos e argumentando que a sátira também era uma forma válida de luta interna no partido. São palavras de Jason: “o Mário quase se mija de tanto rir, lendo o teu material”. Esclareço que  Jason era o nome de guerra do jornalista carioca Nicolau Tolentino de Abrantes.

A FALTA QUE FAZ - Mário Alves era um dirigente comunista que procurava manter as antenas ligadas ao que rolava culturalmente na sociedade. Traduzia em vários idiomas, possuía  estofo intelectual, um grande poder de síntese, um texto denso e  muito bem acabado. Sendo um dirigente político e um redator partidário, sua  produção intelectual, que ainda não está reunida, foi muito marcada pelas urgências, sobrecargas, tensões e dificuldades da militância clandestina. Se tivesse sobrevivido, Mário Alves  teria podido  desenvolver, nas condições pós-anistia,  uma atividade intelectual de maior fôlego, exercitando a análise política da experiência vivida e dos desafios atuais. Esta é uma   incalculável  lacuna que a sua morte nos deixou. 


POEMAS AINTIBUROCRTICOS - Os Poemas Antiburocráticos (Burocras),  na sua maioria, foram escritos entre  os anos de 1968 e 1969 e   constituem uma crítica ao burocratismo, compreendido sob dois aspectos:  a apreensão da realidade sob o filtro das quatro paredes dos pequenos círculos e a intervenção a partir das formas e das normas  ossificadas. Nas formulações e no cotidiano do PCBR e da esquerda armada, mesmo emascarado  nas capas do ativismo e das ações ousadas, fui descobrindo a essência e as nuances do burocratismo, a que dei  um tratamento satírico, com o  natural exagero das caricaturizações. A seguir, o desfile de alguns Burocras,  tal e qual foram escritos e divulgados na época, em rodas de militantes. Todos os meus textos, em poesia e  em prosa, foram apreendidos quando da prisão (e do assassinato sob tortura) de Odijas Carvalho, no aparelho da praia de Maria Farinha,  no Recife, onde eu estava morando e de cuja queda escapei,  por me encontrar numa reunião noutro estado. O grosso da parte de poesia foi reconstituído nos meus primeiros meses na Casa de Detenção do Recife, em 1971. 



                                                                                                                                                                 BUROCRA 1


O verde burocrata
ou o burocrata maduro
no seu casulo
respira o mundo
em ondas redondinhas.

O verde burocrata
ou o burocrata maduro
no seu casulo
refaz o mundo
arredondando-lhe o corte
com a sua implacável
grave e disciplinada
tesoura de decretos burocráticos.

Sucedem-se as resoluções insossas
num mar de consequências buroanêmicas.
Ou os decretos irreais pomposos
gerados em euforias de birô.

A vida irregular e borbulhante
então se organiza em prateleiras
cumprindo a cachoeira de decretos.

É quando o burocrata já cansado
de tanto recortar a vida e o vivo
encerra o expediente da tesoura
e vai dormir
ou arquivar seus sonhos.

No exato momento
em que a ditadura publica
mais um ato institucional.


                                                                                                                                                                  BUROCRA 2


A vida é simples para o burocrata.
No seu birô
com a sua caneta
o seu papel
 quorum
o verbo
e a hierarquia
 ele constrói e reconstrói o mundo
como edição pilulificada de Deus
nos sete dias
da sua majestática criação.

Algum problema?
- Resolução.

                                                                                                                                                                     Deficiência?

                                                                                                                                                             - Um curso, irmão.

                                                                                                                                                              Com morto e vivo

façam um ativo.
Para o incremento
mais um documento.

                                                                                                                                                                Para organizar

uma circular.

Ponto diário.
Mais reunião.
Mais um secretário.
Mais discussão.

Abaixo o foquismo
e o partidão!

                                                                                                                                                               BUROCRA 3


E o principal motivo
para nós sermos ateus, companheiros,
é que Deus foi um burocrata:
fez tudo por decreto
hemorroidalmente
sentado.

Por isso mesmo a sua criação
pressupôs o cão
e o seu cabedal:
o pecado
a cobra
e o Jardim do Mal.

 
                                                                                                                                                                BUROCRA 4

Raízes Ideológicas:
primeiro documento.

Caules ideológicos:
segundo documento.

Folhas ideológicas:
terceiro documento.

Flores ideológicas:
quarto documento.

Frutos ideológicos:
os foquistas tomam o poder.

Ah! Que prazer!
Mais um documento
 para escrever!


                                                                                                                                                                 BUROCRA 5


O grupo de trabalho
não está trabalhando
porque está elaborando
um plano
de trabalho.


[Publicado originalmente na Revista Brasil Revolucionário]

Participou da UNE. Ingressou no PCB e foi um dos líderes do movimento de massas de 1942 em Salvador, contra o nazi-fascismo.
Em 1945 passou a integrar o Comitê Estadual do PCB na Bahia e em 1957, foi eleito para o Comitê Central.
Com o golpe de 1964, tornou-se um dos líderes da corrente de esquerda dentro do PCB. Atuando nas difíceis condições de clandestinidade, foi preso, em julho
de 1964, no Rio de Janeiro, sendo libertado somente um ano depois por concessão de
Novos Rumos e Voz Operária. Fez o curso secundário em Salvador e foi um dos fundadores da União dos



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